Tempo para parar
Num mundo em que tudo é cada vez mais rápido, em que as coisas mudam cada vez mais depressa e em que o “medo de ficar de fora” é já um problema clínico, temos de encontrar tempo para parar – e para viver.
Na incessante procura pela “vantagem competitiva”, começamos a pensar, a planear e a agir com vista a um possível futuro profissional quase desde o berço. A pressão feita sobre as crianças, exercida quer sobre a forma de mil e quinhentas aulas, actividades e aprendizagens com vista à aquisição de um sem número de competências, quer através de uma pseudo-avaliação de conhecimentos que, muitas vezes, nada avalia de verdade.
Perdemos a oportunidade de brincar:
- em criança: na infância, por culpa da velocidade do mundo dos adultos e, muitas vezes, da necessidade de manter as crianças ocupadas enquanto os pais trabalham mais e mais horas, as crianças são empurradas para um horário “escolar” com, por vezes, mais de 40 horas semanais.
A isto, alia-se a ideia de que há que começar a pensar no currículo desde cedo – a criança não toca piano nem joga à bola porque gosta ou porque lhe permite uma maior destreza mental e física, mas porque lhe dará conhecimentos de música (sempre um bom tema de conversa), hipótese de ser recrutado para uma grande equipa desportiva (quem sabe se não virá a ganhar milhões caso se empenhe) ou simplesmente “fazer contactos para o futuro” (como se ir à escola, correr para o ballet, acabar o dia na aula de música e ter aulas de mandarim ao fim-de-semana fosse uma actividade de networking que dará frutos no futuro; além, claro, de todas as valências adicionais que a pequenada terá quando for grande).
O caso é tão grave que existem educadores de infância que não incluem o brincar na planificação do tempo das crianças ou colocam-no numa posição opcional – “a realizar apenas se as outras actividades terminarem antes do previsto”.
Na realidade, em vez de estarmos a dar ferramentas às crianças para serem mais bem-sucedidas no futuro, estamos a amputar o seu desenvolvimento tanto ao nível cognitivo, motor, linguístico e sensorial, quanto ao nível da formação da personalidade, da perceção das relações pessoais, das interacções sociais e afectivas. É ao brincar, ao imaginar situações, ao recriar momentos do seu dia-a-dia, ao explorar o mundo à sua volta com os seus objetos, ao interagir com outras crianças num ambiente “mais livre”, ignorando simultaneamente distrações, que as aprendizagens serão mais duradouras e significativas, porque são feitas de forma mais natural e espontânea.
“Não temos juventude, ficamos logo adultos, e continuamos então adultos por um
tempo demasiadamente longo, vem daí um certo cansaço e uma certa desesperança
que atravessa com um vinco largo a essência no conjunto tão tenaz e cheia de
esperança do nosso povo”, Frank Kafka em Um artista da fome/A construção.
- em adolescente: às milhentas actividades que foram acumulando ao longo da infância, os jovens “devem” começar a criar currículo com actividades paralelas (associações estudantis, acções de voluntariado, trabalho comunitário, colaboração em jornais, revistas ou rádios e presença nas redes sociais como o LinkedIn – para se "construir uma identidade") – todas estas actividades são válidas e podem ter bons propósitos, mas quando se tornam mais um item numa lista de coisas a fazer “para se ganhar vantagem competitiva”, a sua prática fica comprometida, assim como os benefícios que as mesmas podem trazer para todas as partes, além de poderem ser apenas mais uma fonte de tensão.
E se não bastassem as aulas e as acções “para enriquecer o currículo”, temos ainda a pressão dos exames, das escolhas para o futuro, de decidir algo que parece determinar o resto das suas vidas numa única direcção à o sucesso!
Um termo que os dicionários definem como um resultado positivo, favorável, feliz ou proveitoso de algo, de uma acção ou empreendimento, que tem um bom resultado, boas vendas ou muita popularidade. Mas que, na realidade, refere algo bastante subjectivo, podendo ter significados muito diferentes de pessoa para pessoa.
No entanto, a pressão social, escolar e familiar, o preconceito relativamente a determinados cursos, percursos ou profissões, faz crer que só existe uma forma de se ter sucesso e isso pode ser fonte de ansiedade, cansaço, stress e angústia.
É preciso combater aquela que é já conhecida como a “epidemia do perfeccionismo patológico”. Esta conjuga padrões pessoais elevados e uma autocrítica excessiva – fruto da pressão a que estiveram e estão sujeitos desde pequenos. Este perfeccionismo pode ser auto-determinado (desejo irracional de se ser perfeito), socialmente determinado (que advém da percepção que os outros têm de nós) e determinado para os outros (o desejo de que os outros sejam perfeitos de acordo com os nossos próprios padrões).
Os jovens precisam de tempo para se descobrirem e para descobrirem o mundo à sua volta, para tomarem decisões conscientes e poderem errar, para apreciarem as novas experiências e assimilarem as aprendizagens.
É preciso parar o tempo de vez em quando para se conseguir avançar. É preciso ter tempo para ler, ouvir música, ver filmes, conversar e descansar. Se alguma dessas coisas servir para “enriquecer currículo”, óptimo. Se não servir, óptimo na mesma, porque servirá certamente para os ajudar a crescer e isso será sempre bom para o futuro.
- em adulto: a roda viva e a exigência de aquisição de mais e novas competências não afecta só os jovens, mas a sociedade em geral. Num mundo que exige padrões extremamente elevados de eficiência, qualidade e produtividade, é difícil parar e é ainda mais difícil desligar, em consequência da conectividade permanente.
Mas quando é que deixamos de trabalhar?
Serão as sessões de network trabalho? Existe, de facto, uma diferença entre as nossas actividades sociais, familiares e de amizade e as actividades que fazemos com um intuito profissional.
Serão as palestras a que assistimos trabalho? Por muito que gostemos daquilo que fazemos, se não nos permitimos ter momentos em que não pensamos no trabalho, podemos estar a limitar a nossa realidade.
Serão os livros técnicos e de desenvolvimento pessoal trabalho? A leitura melhora o nosso conhecimento, exercita a memória, aumenta o nosso vocabulário, ajuda-nos a desenvolvermos o pensamento crítico, reduz o stress, melhora a concentração e, com tudo isto, aumenta os nossos horizontes, a criatividade, a inteligência emocional, o compromisso, a capacidade de contar histórias, o espírito crítico, a capacidade de análise e a nossa empatia, mas se estivermos sempre dentro do nosso mundinho (profissional) será que estamos realmente a tirar o melhor partido das leituras que fazemos ou estamos, mais uma vez, a trabalhar demasiado?
"Se te perguntar sobre arte, irás dizer-me tudo aquilo que alguma vez foi escrito
acerca do assunto. Michelangelo? Sabes tudo sobre Michelangelo: conheces a sua
obra, as suas aspirações políticas, a relação que tinha com o Papa, as suas tendências
sexuais, tudo! Mas não serás capaz de me dizer a que cheira a Capela Sistina. Nunca
estiveste lá, nunca olhaste para cima e viste aquele belíssimo tecto. Nunca o viste.",
do filme O Bom Rebelde.
Por isso, tiremos tempo para brincar, para o faz-de-conta, para vermos o mundo com outros olhos, por outros olhos.
Tiremos tempo para pensar, sem pressas nem prazos nem temas pré-definidos, para deixarmos os pensamentos fluir por onde estes quiserem ir.
Tiremos tempo para parar, para deixarmos que os nossos sentidos absorvam o mundo e nos devolvam sensações.
Num mundo em que tudo é cada vez mais rápido, ganhemos vantagem competitiva ao olharmos o mundo nos olhos, em vez de só passarmos por ele.
(este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)